quarta-feira, janeiro 31
terça-feira, janeiro 30
Descobertos
Lamento, mas isso faz parte, é que o amor se transforma em raiva, gana, desforra, um tão grande carinho virado em rancor. Briguei por birra, ciúmes, coisinha de nada, mas bem lá no fundo da vida eu só queria zelar. Todos agridem por amor e eu também fiz isso. E senti remorso, peso, culpa, credo, fui de uma passionalidade, sai da casinha sim!
Lamento, mas foi desatino. Lamento mostrar minha cara, lamento o pouquinho de fel: eu me apresentava pela primeira vez à possibilidade do abandono nu e cru.
E eu me afundei aos seus olhos. Eu era homem imperfeito, eu desfazia com cinqüenta pés o que sempre cumpri: não ser mau, não magoar, não ofender!
Eu me descumpria, maldita noite! Falava o que não devia eu devia ficar num canto por ser manezão. Em drástico castigo, num triste mando, eu que fosse ser valente pra lá.
Foi por coragem, confesso. Eu não queria perder na conversa, eu queria ser bem mais do que penso e virei um possesso por critérios só meus.
Todos, por tanto amor, assim se desmantelam. De um quê sem porquê chegam à mágoa. Puxam as brasas, querem o monopólio da fala e aquilo era um gripe aviária batendo em nós. Calculem: difícil pra ela, ruim pra mim.
E eu naufragava e já quase ia a dizer sou um produto de Deus: Humano, desumano. Mas nem do Pai esperava o perdão. Queria da amada as desculpas e a conversa salgada seguiu. Os termos do ciúme, a fina ironia, cada frase mais infeliz.
Era uma agressividade arrependida que ainda assim prosseguia. E isso era cruel porque era consciente: a briga é um pesadelo despido de sedução. E casal que já não seduz, mingua, mingua, se vai.
Cabe descobrir o mel, dizer à amada, bonita!, revalidar a paixão!
segunda-feira, janeiro 29
Movimento dos cabelos, movimento sendo inútil, movimentos de um pai em fuga
Misturar Lenny Kravitz com Os Bertussi, ficar num Beatlezinho nada mal.
Tenho sala de coisa antiga e tralha pós-moderna que vá precisar.
E um monte de livros. Fitzgerald amparado num Atlas e no canto da estante uma pilha de velhos gibis.
E dê-lhe bule com microondas na cozinha. Uns vinhos presenteados, esquecidos, e bem no fundo guardado tenho o chá de hortelã.
Fotos?
Só preto-e-branco.
Gosto de Ana Cristina César e à tevê prefiro o jornal.
Gosto de doce de doceira. Morena ou loira, não faz mal.
O que detesto é a palavra piedade, e, pelo sentido inverso, persigo antigas paixões.
Em Laguna, blasfemo. Em Caxias uso gravata. Desse pra voltar a Lisboa, usaria o algodão.
Admiro o linho. Saco a rejeição. Pareço a cara de um sírio e faço com meu pouco dinheiro um mundinho melhor.
Amo, seduzo, sou discreto. Se fosse eleger “a imagem” , elegeria a imagem mulher.
Sua nuca, especialmente. Aquele movimento que agacha estirando os cabelos depois de tanto banhar.
Já muito adormeci pensando nisso. E depois que adormeci os mesmos cabelos ainda sonhei.
Coisa de solitário. Homem sem filhos. Fama, louros, vai ver nasci pra cachorro e esqueço de latir.
Quá!, e sou muito bem-humorado.
Acácio, Clemêncio, Jelisário, vejam o meu santo sudário na hora de escrever.
Pinto o que descrevo. Descrevo o que desenhei. O inútil pela coisa nenhuma, e daí que já contei de uma égua que lá no Bonja vi lavar!!
Porque eu vim do baixo, da procissão de pedintes, me tornei ouvinte da infância e transformei num novelão.
Zoinho, Zulmiro, Vazulmiro e Seu Belé.
D. Jalusa.
Eu não esqueci daqueles ausentes e em primeiro lugar meu pai.
Bacana, sacana, potente. Engravidou, deixou a semente, se sumiu pra nunca mais.
domingo, janeiro 28
Fazer criança
Ao novo ser tudo de ti eu quero, contorno, traço severo, farei de teu colo o trono, o embalo do sonho sonhado que furtivo chegou. É o desdobro do que tive represado, reprimido, sempre alerta, por fim descoberta e pronta a explodir: berros do berço, terço no parto, pintarei o novinho quarto com o dom de dizer:
Amor de carne, louco! Amor singular, múltiplo à mostra, eu lá sei de que forças este amor eu formei!!
É criança, veio vindo, veio. Amor, bochechudo, pleno e cheio na forma que tomou. É a gravidez assim que te precede. Sabes, mulher grávida, essa é a desrazão que se mede, é o tamanho desse ser.
Alvura, rosto, figura. Essa forma de anjo seja feita à sua mãe. Por isso, o plágio de ti. Por isso, mulher madura e feita um dia será. Para que outro também a sonhe, seus cheiros, suores, poros, todos os seus defeitos de humana ele também os verá.
A moça querida que crescer serás tu de novo. Será o amor repetido de agora na forma que o tempo passar.
Fala-se aqui na filha. Fala-se aqui na permanência de amor. Fala-se aqui na permanência latente de todo o homem querer ser pai. Quis não, o senhor, ter sua filha? Não quis vê-la também moça, educada, em prataria ou louça talvez?
Sabe-se, esse é o orgulho maior! Se for rainha, seja rainha feia aquela que contigo quero ter. Para que jamais a coroem, recopiem, pai sente ciúmes que nem sonhei.
Com um dedo indicador esse anjo criança me aponta. Tonto, sonso, burro, homem idiota, refaço em plágio o rosto teu. E, escravo, piegas, ponto de fuga, sou um simples homem exposto ao chavão.
Mas o que devota, se adora, já no berço jamais chora, porque fazer criança é da espécie, não tem segredo, fórmula, magia, é o homem seguindo o destino: viver, se reproduzir.
sábado, janeiro 27
Mulher acordada, homens tolos
E no acontecer desse silêncio, diabos, nesse silêncio feminino é que ele se põe de joelhos, é quando apreende a insignificância, apreende a fragilidade, bicho estremecido pela falta de atenção da mulher.
Quando pinta esse silêncio sem causa, ele, mudo, revoga tudo o que pensava ser. E se faz um homem no arrasto. E se arrasta porque o silêncio da fêmea é o que rege as estrelas, é por ele que os homens sofrem, agridem-se, choram, fazem a guerra e a paz.
A fêmea silente é o que move nossas passadas, é o nosso raio de luz.
Esse mudo virar de costas é o legado de Eva, herança nossa, parte e costela, padecemos ao seu bom lado, mulher, no teu emudecer.
O silêncio desinteressado da fêmea é o que nos aguça, embeiça, amacia, é o nosso Máximo Demolidor Comum.
Todos padecemos disso, ao dar de ombros vago, ao pouco me importa da mulher.
E é um silêncio que olha, toca, fere, é calor morto de uma noite sem sal. Lençóis aos pés, que vale o amor sem gozo?, o silêncio, o silêncio a gritar!
Mudo amor que não abre lábios e apenas sussurra, “só se quiser”.
É brutal isso. E é o que nos domina, mais nos eleva, nos faz anjos decaídos sem mais Deus.
Não há precisão matemática, ciência, cadência de samba ou bode que nos alivie do não saber. O que se passa afinal neste instante da força que emana da fêmea ao silenciar? De onde vem, afina, agarra com muda força feminina o homem no contrapé?
Esse emudecer é o que faz o homem gemer, é o que faz a Terra chorar.
O silêncio da mulher!
É o princípio do mundo restar ao lado da mulher que está sem estar. É o verbo em si esse calar. Luz sem voz, a Mulher, Divina Causa, nos precipita neste vazio.
sexta-feira, janeiro 26
Se retornasse a Bom Jesus
Casa que já não há, pia que já não há. No hotel de tua pia se trocavam almoços por gado, alegre e festivo era o teu bom hotel no trabalho. Mas já não existe hotel e busca-se também agora o amor, o amparo, a casa substituta.
O não-retorno tem uma lágrima que seco rápido. E tenho em minhas mãos o teu par de brincos e eu sei agarrava teus brincos retorcidos como um pequeno anzol. Menino, grudava em tua orelha pra dormir. Pegava tua orelha aconchegado ao peito quando nos disseram não. Não, não batizo, és solteira!
O que sentistes nunca contastes, ô, mulher resignada! E devias. Como preservar tuas coisas se não quebrar agora a pedra desse coração? Eu, merecedor de teu afeto, teu filho, pagão.
Já não rezo. Nunca rezei. Sabes, já não choro. Eu sorrio como aqueles que trazem os olhos esgazeados, igualzinho o santo que mantinhas em tua cabeceira. Ave Maria, não. Pai Nosso, não.
Na verdade, retorno às dores e aos dentes, e não devia. Mas isso também é uma forma de rezar.Para que passe a dor na minha forma de saudade num Pai Nosso que não há, em Maria que não houve, num pai que escapuliu.
Se retornasse a Bom Jesus protegeria ainda o que tive. Quem me queria com os passinhos, as unhas sujas, aquele infame rastejar num porão para espiar intimidades desconhecidas.
Retornar a Bom Jesus é insistir que permaneces em uma casa que já não há.
Por isso, agora sou eu quem estende a orelha. Afaga. Aconchega tua mão morta na orelha do teu filho. Pode sim!
Pega.
Aconchega!
É de arrepiar. É de arrepiar sentir a mão assim.
Há um estalo de madeira velha em nossa antiga casa. A casa que eu não trouxe. A casa que é o coração, vida, é a doce presença de alguém que já não está.
Jogo as flores na lata pela janela. Espatifam-se.
pr
quinta-feira, janeiro 25
Em torno da idéia
Pra que serve em teu rosto este creme — a fazer idade?
Pra que serve o ponteiro no 13 — controlando a hora?
Pra que serve este bote certeiro — se tens a beirada?
Pra que serve ainda poema — sapatos com asa?!
Pra que serve pisar um chão liso — tomar a cachaça?
Pra que serve cruzar esta nave — ir ao casamento?
Pra que serve medir estes passos — diminui a estrada?
Pra que serve o andar no compasso — defunto não levas!?
Pra que serve formar o botânico — se não regam as plantas?
Pra que serve o que não serve — pra mudar de idéia?!
pr
quarta-feira, janeiro 24
terça-feira, janeiro 23
Preparo de um poema
Talvez um poema azul
Um poema-desejo
Um poema-estandarte
Ou me sobre a infeliz incumbência de apenas prosear
Morrem poetas a cada minuto diante de um sorriso
Faltou-lhe o preparo
Morrem poetas a cada minuto diante do percurso de um vestido
faltou alinhavo
E assim, toscamente, se pensa que a sorte
é poesia
Pensa-se que um ramo, a guerra, uma despedida vale um poema
Despreparo ainda
Falta-lhe um método, um jeito, uma função de apoio
Faltou-lhe um seio
A cor, o ritmo, o sexo
Mas onde ainda o preparo?
Poema.
Que se faça poema no balcão do diabo
na toca de Deus
mas que o poema tenha (pela descrença que faz da prosa)
a sua decantação
o seu vinagre, o coalho,
a sua serenata de lágrimas
Acaso isto é um poema?
É cláusula
Intenção
Tabelionato de Idéias
Renderia prosa.
Prepara-se aqui à luz do dia
O poema não escurece
Ele requer uma seca
Estiagem
vento e frio
pra dizer de sua safra
Não se convençam, garotas, leitoras, meus amigos gaudérios...
Aqui não se tem UM poema
Se tanto, um esboço.
Muito sendo, estrago saudável
Uma goteira de intuição
Arremedo, traços
Poema escorado em desenho?
Que vá plantar bananeira!
Poema é o que se vira sendo o próprio
Poema que faz seu inverso o espelho da alma
E, cá com o meu despreparo, já combinamos: o poema deve ser antes de tudo sincero.
O resto é alpiste
pr
segunda-feira, janeiro 22
domingo, janeiro 21
O livro negado
Da solidão? Da aspereza das coisas como a casca de um pêssego nas mãos de um alérgico? A vida é áspera, cara, o amor, quando se acha, requer uma ternura que afronta o descartável.
Meus rins estão bem, o intestino, o fígado, tudo normalidade.
Ainda assim, meus amigos sugerem buscar apoio.
Pensei que já o tivesse. A literatura que roubou de mim até o último centavo, nada então me cobrava. Me trazia à tona, fazia de mim o meu próprio ouvido. Fazia o que eu era, um especialista em Paulologia. Mas não vou à praia este ano, não fui ao bar, à balada. Fiquei desta vez sozinho na trapaça comigo mesmo: me negar um livro eu ainda não tinha experimentado.
pr
sexta-feira, janeiro 19
Pedro Antônio e Ana Elisa
Porque a D. Mariinha Fayet entendia de tudo o que era cor por gosto ou por moda. E valia automóvel, chapas de moldes pra dentes e mesmo o formicida em pó.
Mas, como a Nasa dizia, fosse porco, leitão, pessoa, quando dá a primeira coisa, no mundo, na cabeça fraca, a tendência é sempre se repetir.
Se repete uma face triste, um choro por ente querido, até as coisinhas alegres, raramente, inventam de voltar.
Trazer Cadeirinha de Belém, por exemplo, paciência, só de vez em quando. Iluminar cabeça de abóbora, também nunca mais.
A D. Mariinha não falava, só cantava no começo do derrame um pouco.
Mas se via nos olhos dela que ela dizia, ô querido!, pro Pedro Antônio. E o Pedro Antônio parece, com vergonha, não olhava e devia morrer de obrigação.
Já era educada aquela gente!
Jogar bola chorando, ficar criança feliz chorando, não podia. Não podia porque ia sair sangue do nariz.
E a Ana Elisa também brincava no jardim. Na praia em metade de ano. E brincou também no pomar iluminado que numa noite ficou.
Trecho de Cozinha Gorda
pr
quinta-feira, janeiro 18
Missa para Kardec
Marfisa tinha a pauta memorizada naquele entardecer.
Tinha a pauta, sabia do sino, sabia das horas, e, como se fosse um crepúsculo, o harmônio soou.
Ah, a boca larga daquele instrumento do padre merecia definição!
Um movimento pendular tinha o harmônio, tocado a pé, trazia as melodias por um interno correião.
Canções por correia, eram lindas algumas. Eram as mesmas usadas pelas internas no pensionato, justas, afinadas, por religião.
Mas o que se ouviu foi um toque pesado, de tristeza, de morte, cravado, cortante, e saiu o barulho esse como alegria da Marfisa Ignez.
Pautada por quem a devota nossa irmã?
...
Enérgica, tapava os cabelos ao chegar nas missas e vinha mesmo nas visitas ornada de véu muito fino. Também era muito higiênica a sua sala —com um Cristo crucificado às costas e a legião de Cristinos aos retalhos por um qualquer ajutório.
Das mais leigas franciscanas a Marfisa auxiliava, auxiliava mesmo por gosto, era higiênica, ajudava por seu dever. Atendia com tino forte, pouco sorria, perguntava, perguntava, começava a conversa por longe: onde morava?, vinha freqüentando uma outra reunião?
Andava a onda espírita, entenda-se, e eram feitas de pura aparência as relações.
Daí a desconfiança e a Marfisa, muito higiênica, parecia que mais se enojava se fosse lhe abrindo o coração.
quarta-feira, janeiro 17
Ladainha
Mudaram a beirada do cagar das pombas
Mudaram de astúcia, ficaram birutas
Mudaram o trajeto num vôo de circo
Mudaram os partidos, que parto custoso!
Mudaram o cinismo com cordialidade
Mudaram a criança, coitadinha, assava!
Mudaram a goteira lá do céu aberto
Mudaram o alpiste, um bico no tráfico
Mudaram o asfalto, caíram no samba
Mudaram o sorriso, virou incumbência
Mudaram de guerra e ainda mataram
Mudaram a pedido, mudaram de seio
Mudaram de sexo por sobrar dinheiro
Mudaram de coração — e em cima da hora
Mudaram a escrita por mil imprevistos
Mudaram de zinco porque deu na telha
Mudaram o tesão na curva do joelho
Mudaram de prazo, precisos, sem freios!
Mudaram o rebanho prum prédio de ferro
Mudaram o estrago de forma esquisita
Mudaram o castigo por pura promessa
Mudaram as carícias, acompanhe a tonteira
Mudaram pra gelo essa água tão mole
Mudaram de ciúmes por um outro afeto
pr
terça-feira, janeiro 16
Em janeiro faremos aniversário
Em janeiro, eu e a nossa paróquia, um curtume falido, eu e a nora do Têna, ouvi dizer que um oceano vai fazer.
Em janeiro faremos aniversário, eu e a Casa do Prego, a guria da farmácia, um famoso Theo MC.
Não sei quem é. E quem mais houvesse nascido faria sem eu saber.
Faremos aniversário, eu, se viva, a Dona Alda, o encanto perdido, aquela casa encarnada lá de Bom Jesus.
Alguém da família Jardim. Alguém que ainda use colete, alguém que procure no shopping o emplastro Sabiá.
Em janeiro, eu, os bancos e as vidraças da igreja. Eu e a Vicenzia de niver, eu, ela e o seu guri.
Em janeiro temos o Santo da Casa. Eu e o Rio de Janeiro. Eu e São Paulo também.
Em janeiro faremos aniversário, sem nenhuma descendência, eu e a D. Joana Joanin.
Em janeiro faremos aniversário sem nenhum barulho, quietinhos, bem lavagem do Bonfim.
Em janeiro inventaram a tabuada, pariram o Mike Tysson, a minha Gerítzia de ficção.
De janeiro é a Rô do Rudi, a Têre, mãe da Dadá.
Em janeiro faremos aniversário, eu e o carnê já vencido, a criança da Lê, o Xis do Seu Bento e a altura do capim.
Em janeiro faremos aniversário, eu e a pintura da casa. A Elvira do Lauvir.
Em janeiro faremos aniversário, eu e um ex-Presidente, aquele noivado difícil, a morte da minha irmã.
pr
segunda-feira, janeiro 15
Salvar como?
Como fazer sucesso sendo antigo, registrar nome feio, fugir do espelho d’água?
Narciso!, como querer ser Holanda se nascemos Nigéria?
Como cumprir nossas faces em cada aniversário?
Como fazer funcionar Bom Jesus?
Como fizemos promessa, criamos a quarentena, o cenário de um filme?
Como querer Madalena, as luteranas, as nossas irmãs mais espíritas?
Cadê a empresa Taranni? Quem herdará dos Medeff?
Como habitar tábua por tábua, a mecânica do amor, como se faz pra parar escritor em férias?
pr
domingo, janeiro 14
sábado, janeiro 13
A voz dos ausentes (ou sobre um ano do blog)
E essa água aqui foi trazida. E a voz também: a voz da fome e a voz dos crentes em Jesus.
A voz do mundo dos vivos, a voz da sede, do frio e dos ventos, teve voz o feno, as lavouras, a serra, ah, poemas de mãos calejadas!, teve voz o centro do Rio.
Teve voz sobre um aceno, sobre um cão entristecido, teve voz aqui a aflição.
Teve voz de uma Banda Furiosa, voz de umas quantas figuras, um estilo peculiar.
Voz pra todos. Voz sobre marcha, rock, samba, valsa, sem partitura se fez.
Voz rasgada. Voz sobre a liberdade, sobre a carência de amor.
Foi o que mais se falou: sobre pessoas, sobre tijolo e ovelha, se fez voz até do sujo barro, voz imitando carro e voz que a chuva molhou.
Sobre o mar. Polícia. Teve voz como um tiroteio e uma formiga que falou.
Muita fábula, muita bíblia, voz que fez a vida valer.
O poder da voz.
A voz sendo sempre o que resta na hora de solidão.
Voz e gravura. Um Papudo andou aqui.
Paciente voz. Voz de confissão.
Já se fez voz aqui como um rádio, voz aqui com um santinho no peito, voz pedindo passado, saúde e tal!
Uma mudinha aqui foi mãe. Teve voz, foi um pássaro, e o canto de todos os pássaros é um poema universal.
Guerra, morte, religião.
Já se fez voz aqui ao pão, à farinha, voz que chorava por hóstia e sendo lágrima de perdão.
Voz pra pensar um filho. Voz pra aliviar a dor.
Um chá, um alento, voz trancada, se externou o gogó aqui.
Teve voz pra anoitecer um corpo. E teve voz de surpresa se o desenhou não bastou.
Voz preocupada. Voz pra menina, à morena, voz pra quem a água pediu.
quinta-feira, janeiro 11
A forma do calor
os rios não correm
as árvores entrevam
não há o que respirar
Quando o coração não bomba
as guerras entram em trégua
e eu desbroto a couve a flor
Quando a roda não roda
nem o dinheiro circula
estática
muito estática é a forma do calor
Quando o seio não dá o leite
o amor já não dá amor
Quando o pássaro mergulha
os peixes conferem os bigodes
por minha mão
É a poesia!
pr
quarta-feira, janeiro 10
Diante dos fatos
Que lugar você conhece da Bélgica, você já recortou bandeirinhas com os filhos e a boa nata esparramou no pão?
Por que a carcaça não tem pressa? Por que o comércio, quando fecha, despeja todos a correr?
Que cor tem a luz espetada num fiapo?
Quem inventou a dor do parto, a cólica de rins, filho antes de mãe morrer?
O que mais lembramos durante a anestesia? Quem foi Tertuliana!? Quando mudamos de alvo vale o quê?
Quem é sensato? Já se fez de morto sob prova lavrada, você já ficou constrangido, faltou com respeito e teve a decência de se arrepender?
O trajeto da mula de São João Maria. Conhece?
Qual é o seu presságio? Se os pês e bês de tua letra indicam riqueza, cadê a tua praia, mané?
Você teme o crucificado, você já entrou na igreja com uma lata de figo?
Desconfiança? Você diz infelizmente? Teu trabalho, a aliança, isso é teu fardo ou prazer?
O licor sugere. E a gota de chuva?
O que sobra pra você diante dos fatos?
Já fez um poema na vida? Já transou com a beleza ou não?
pr
terça-feira, janeiro 9
Imagem ao redor da lanterna
Já tentei uma mulher sendo acarinhada. Ficou feia, ficou torta e eu tive de desistir. Ficou feita a picão.
As doze filhas de uma doceira eu só arrisquei dar um traço. E um escrivão meio curvo saiu à minha cara.
O rosto do pai que nunca tive eu até consigo, mas não tem braço.
Igreja, as telhas da igreja e carro não têm braço. Braço de bicho é muito fácil. Desenhar corpo de francesa é muito mais fácil ainda.
Agora, braço, braço que seja de mar ou espada, eu já me estrepo. Só na cruz eu ainda acerto. É que ali são braços abertos.
Braço nadando, nem pensar. Braço sem roupa, pior ainda.
Eu já perdi mais de mil desenhos... por falta de braço.
Não tenho punho pra isso. Eu sou um desastre no que saio do ombro. E eu andei e ando precisando pôr um braço no ombro. E eu tenho desenhado muito. Por solidão; no meu meio turno de férias eu tento enganchar um braço.
Não tem jeito. Não desenho braço. Eu não desenho nada.
Às vezes, porém, eu penso comigo: mesmo com o braço feio, as minhas gravuras se parecem com a verdade.
E por isso a mão que suspende a lanterna no escuro da casa eu achei que se salvava.
Nesta gravura uma mãe vem ver a febre do filho. E foi feita com muita saudade.
pr
segunda-feira, janeiro 8
sábado, janeiro 6
Conversa fiada sobre o nosso fim
Eu vou dizer cantando na praça, eu vou dizer por abraço de moça, o lamento mais triste eu vou dizer: casem na igreja! Casem na igreja comigo, eu vou dizer.
Na saúde e na doença eu vou dizer. Flora e prosa eu vou dizer. Em escritura, certidão e boa letra, eu vou dizer.
Eu vou dizer como os fios se tecem, eu vou dizer o que descobri.
Eu vou dizer leiloando, eu vou dizer por dinheiro, eu vou dizer de um sucesso, de um lucro, os meus fracassos um por um.
Eu vou dizer em silêncio, na corda, eu vou dizer dando badalo, com meus próprios dentes eu vou arrastar.
Em intenção da minha alma, eu vou dizer os pecados, do fim de um amor.
Eu vou dizer incisivo, o pescoço pelado, eu vou dizer investindo veneno, vou dizer como um escritor.
Eu vou dizer a minha senha, eu vou dizer chamando pra missa, eu vou dizer a hora cheia, triste e certo que vou morrer.
E de um jeitão bendito esse espiritismo diz de mim.
pr
sexta-feira, janeiro 5
quinta-feira, janeiro 4
Recordações do Rio de Janeiro
“Ainda sinto pesar sobre o meu ombro a mão amiga do Santa Rosa, que, sorrindo, com o cigarro a pender dos lábios, indagava: “E as mulheres?”... “E as mulheres?” As mulheres tostadas pela raça e pelo sol, de ancas fartas, que gingam no seu andar miúdo, decididamente não se assemelham às vênus da Grécia. Graças a Deus”.
Iberê preferia as helenas daqui. Rejeita o clássico “modelo grego” substituindo pelos atributos físicos das mulheres brasileiras. Privilegia a representação da graça feminina que conviveu no Rio. E olha que ele andou...
*O livro é Gaveta dos Guardados, edição da Edusp, e uma excelente opção de leitura de férias. Trata-se de uma reunião de relatos memorialísticos em que o pintor gaúcho retorna à sua infância e adolescência, relembra casos amorosos, passa pelo tumultuado episódio de assassinato no qual se envolveu, nos anos 80, fala de alguns de seus principais companheiros de geração, fazendo também uma aguda reflexão sobre seu próprio trabalho
quarta-feira, janeiro 3
Desinteresse
O desinteresse é o que chega no tarde, o desinteresse não faz alarde, desinteresse é só ficar com preguiça da mesma situação. Não é indiferença. O desinteresse não magoa, apenas desafeiçoa, é uma forma de libertar.
O desinteresse é independente, é sentir-se sem dono, questão de justiça, é deixar o tudo e o nada igual. O desinteresse é democrático, o desinteresse não vê defeito, tá nem aí pra aparência, é o momento que toda a vaidade se vai pro escambau.
Neutro. Bocejo. O desinteresse é um solfejo que o maestro tem de engolir. É fuga da pauta. O desinteresse é leão na jaula sem dentes nem pra guspir.
O desinteresse dá Ibope, vejam o João, o Gilberto, tem anos de nem aí. Não sabe, não ouve, não fala um porém. O desinteresse não faz, não procria, o desinteresse tem um codinome, alienação.
Música, criança e poesia não têm interesse. Se fosse um brinquedo, se fosse um comportamento, o desinteresse seria hippie, um carrinho de madeira, o desinteresse seria o que a gente lembra e diz para apagar.
Todo o desinteresse é assim ao contrário. Nem desdenha, nem compra, o desinteresse é uma sombra vagando no lar. O desinteresse é o quarto de hóspedes que se passa a habitar. O desinteresse, morando junto, é a rotina em exposição.
Clareia, alveja e areja. O desinteresse não é verde ou vermelho, nem foi azul ou marrom. O desinteresse é descolorido, é nunca tomar partido com a maior convicção.
Desinteresse é, portanto, protesto, é ácido, desinteresse não é de fingir. Desinteresse é um tanto faz, não me preocupo, desinteresse é a calça de brim feito terno, é um ah!, um que bom!, nada mais.
E o desinteresse dos olhos?
O desinteresse é racional.
pr