Vidas paralelas
Certa vez, Guignard disse a Iberê: quando o quadro “fizer” um som, está pronto.
Para aquele que não lida com arte, parece conversa de maluco. Mas ocorre mesmo uma espécie de vida paralela quando se acerta numa busca. É algo (vou carregar talvez de misticismo a expressão) sobrenatural, indescritível mesmo. A sensação de um bom estranhamento diante da Nova Realidade que se tem então como produto artístico.
O urro, o Olé, o Brummm! que um quadro faça, na verdade nada mais é do que a volta do artista mergulhado num outro mundo. Pejorativamente, chamam a esses criadores que “saem da real” de Poetas. Mas não há nada de pejorativo. Cabe aos criadores, muito mais agora neste mundo virtual em que estamos submersos, esta saída de cena. É aí que se dá a criação. A criação autêntica, diga-se. É um mergulho mesmo, é o confronto com forças que não se encontram aí na igreja ou nos shoppings.
Iberê, por exemplo, para alcançar isto, conjugava no seu processo criativo a tensão do talento com a reflexão sobre o mundo. Essa conjugação fica evidente principalmente na sua trajetória final, os anos 90. Pressentindo o seu fim, Iberê, cada vez mais isolado, acirrará este ajustar de contas com as “forças estranhas” que regiam a sua arte, e levará ao extremo esse apostar com o absurdo, o que resultará, entre outros aspectos, na deformação do modelo — como se vê radicalmente nas telas do período.
Nesse jogo, nesse mergulho que sempre empreendera com o “poço encantado que transforma as coisas” (a frase retirei de um dos seus contos do livro No andar do tempo), Iberê deixava a descoberto toda a sua essência (a essência do verdadeiro criador): o jogo com a angústia de viver resumia-se, ali, num jogo com a própria morte. Ao lançar-se a isso, Iberê Camargo encerrava uma experiência artística das mais fecundas do século passado. Talvez insuperável em nosso horizonte.
Texto para o Pioneiro de amanhã. A tela é Pintor e Manequim, de Iberê.
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