Boneco molão saiu do fogo (ou a história de um incêndio nos 17 rádios)
Foi na ocasião da rainha:
Elegeram a rainha e — rainha eleita, justo, merecido — a Guadalupe saiu erguida num cordão organizado.
E trouxeram um rei pra Guadalupe entronizar.
Um esqueleto de namorado dela. E parodiaram esse rei-esqueleto na pessoa de um molão.
Um boneco, um manuseado rei, marionete, e troçavam com ele nas cordas como o São João Maria na imolação.
Bem manipulando e hereges, em poucos minutos fizeram o maior cortejo pra morto que já se viu. Com alto-falantes e tudo.
Guadalupe tinha esse nome em homenagem à santa mexicana da anunciação. É que sua mãe, Dona Maria Lura, a famosa Formiga, doceira, era muito forte em devoção.
Guadalupe tinha uma filha para criar. Se chamava Tuca a guria.
E, bem no carnaval, a casa delas queimou.
Ficou a Tuca lá dentro e a Virgem de Guadalupe no pedestal.
E daí que se encapuzaram e foram fogo adentro como se o cordão do carnaval.
O que seria salvo do fogo era pouco, em dois minutos de conversa já dava de dizer.
Mas os rádios do Seu João Surdo tinham a mania de encompridar o incêndio.
E a Santa e aquele cordão de moreno que lá pra dentro do fogo entrou demorava quase uma manhã no noticiário.
Cada idéia! Ora, botar rádio na calçada, ora arrumar capuz em dobra!
Foi o que fizeram. Os encapuzados dos sacos cada um deles pra dentro do fogo.
Por causa daquele engano de forno e cheiro de doce em louro já iam a se espalhar.
Um incêndião bem de madrugada. Tinha pegado fogo na casa e tiraram a velha ligeiro e não me esquecem justo a criança, o principal.
A criança, uns docinhos e a Virgem de Guadalupe ficaram lá dentro do fogo e o que tinha de homem e mulher já chegaram apressados pra ver o jeito de ajudar.
Em fogo nunca se sabe, e foi uma engomadeira que tomou a definição: enfiassem em dobra cada saco no rosto e entrassem pra dentro do fogo e vissem lá dentro se podiam tirar com vida o que se pudesse ver.
Andavam junto lá dentro atrás de nada e já não havia entre eles cordialidade, porque em incêndio, até debaixo de chuva, de noite, um ou outro pega sempre a se irritar.
Acompanharam junto do padre a casa velha a queimar, coisa mais triste, os morenos entrando lá dentro e andavam naquela missão.
Ostrinha derretia assim na pedra, tanto era o calor.
Remédio, vidrinho explodia lá dentro.
E o que era de mais pra doceira, bandeja, travessas de entrega, se arranjava de novo depois. Que se pensasse agora na neta e o resto se ia arranjar.
Um Leônidas tinha dito com razão esses conselhos e a Formiga tinha os braços da filha em torno do corpo inteiro e suado, chegada do Carnaval.
E choravam naquele foguetório. Chuva mesmo de cartucho subindo, e assim é que descobriam que a Maria Lura tinha espingarda por casa.
A doceira tinha a sua filha, a neta, uma cicatriz com fiapos e uma espingarda.
E tava ali afligida por tudo. Que não se envergonhasse por isso.
Que ela se acalmasse, iam dominar o fogo, tinham tomado do fogo metade do sobradão.
E um Vital que voltava de estômago ardendo do incêndio, esse Vital pegando fogo foi tomar água numa torneirinha.
O Vital já todo queimado, mas trazendo a vestimenta da guriazinha.
Agora sim.
A Tuca desnuda lá dentro do fogo e o Vital sem poder falar se tinha visto a criança bem. Se dormia ou coisa assim, porque era de noite.
E um belga lascou “olha lá” pro povo, porque um outro moreno voltou correndo do fogo dizendo que tinha visto a Tuquinha, sim.
E a doceira, nem se lembra, nos braços de quem desmaiou.
Tava viva a menina e, como em prática de incêndio, a guria veio puxada na afobação. Ia pra uma caixa de papelão.
Agora era controlar a hora da água e nas três torneiras botaram mangueira e fincavam água no que era madeira com bastante pressão.
Um sapatinho azul anil subiu pra cima com o borrifo e o que era de prego e prato e copo ganhava impulsão.
Só se desviava a água do que fosse dinheiro.
Que noite! Com uma caixa mesmo do fogo, o terceiro moreno (o Luís S. do Záide?), cabeçudo de fogo, voltava irreconhecível.
Era. Era o Luís S. que vinha inchado.
Parecia com aquela figura de São João Maria ardendo no fogo que o padre tinha atrás do altar.
O corpo ao menos do Luís S. vinha bêbado num ergo fogo, escapo por baixo e grudadinho na caixa que a criança tinha dentro.
O Luís S. tinha bebido na hora do incêndio, bebia toda hora, e fazia essa exibição no fogo que lhe passava na cabeleira.
Era o homem do Sete Baiano, o mal-visto do Pôquer Itália e virado um divertido ao sair com a criança na caixa do incêndio afora.
Festejando, de brasa fantasiado, e como um boneco molão de novo gritava: foi um milagre que eu fiz!
Foi uma milagre dele... esqueleto de carnaval! E os rádios diretamente ligados em Porto Alegre depois diziam que um operário do Curtume tinha salvado uma criança de um incêndio no interior do Estado.
(Esta história deveria fazer parte de Valsa dos Aparados —o meu livro de contos sem desfechos— mas sobrou.)
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