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sábado, novembro 11

A sublime arte de manter os porcos batizados

Quebremos agora os copos, mãe?!
Quebremos!
Quebremos agora os copos!
Dor, porco, sofá. Cada garfo e faca eu escondo. Em vida, cada um desses garfos e facas teve o teu capricho, o teu zelo que sobrou. Morta, o mesmo garfo e faca, o mesmo quebrar de copos que contigo aprendi, resta.
Restos e sobras. Os cacos deixados, lençóis com teu cheiro, marcas tuas, tuas manchas de batom persistem ainda aí. Sobram teus lábios naquele rústico pano que à boca trouxeste. Eu o guardo. Pano de prato que desbota e mantém o rubro batom que usara já doente, já bêbada, decerto transtornada pelo teu abobado AVC.
Amei só teu pai, costumavas me dizer. Amei um homem só no mundo e esse homem foi teu pai. Esse pai que não tive, esse que foi se escapulindo, lomba do cemitério acima, buzinando seu caminhão. E se foi buzinando e nunca mais o vi.
Não guio, por isso. Mal dirijo agora meus passos, minhas poucas palavras nestas sobras que me coube resguardar.
Faço o que mesmo?
Faço o que, perdido, se já nem há porcos que se remexam com o teu doce aproximar?
Mulher da pia, carinhosa, tratadeira mandada, minha mãe dava nome aos porcos.
Eu tenho a tua lavagem agora em minhas mãos.
O que faço com a lavagem?
Meus lábios não aceitam a palavra tenebrosa: mãe, se morreu.
Meus lábios não aceitam a discussão por sofá. Como herdeiro, herdeiro universal, decido que este é o melhor canto para o sofá azul do teu mau-gosto. É só puxar mais pro canto e esconder.
É só isso a herança. E o que afasto daqui também são as tigelas, essas coisas pouco usadas por um homem só.
Não quero classificar tua herança, o teu mau-gosto por isso e aquilo, que fique teu espólio assim, na desarrumação.
Resguardar.
A memória é uma lágrima e tenho em minhas mãos o teu par de brincos.
Espelho de açude eram meus olhinhos. E eu agarrava teus brincos retorcidos como um pequeno anzol.
Menino, grudava em tua orelha pra dormir. Pegava tua orelha aconchegado ao peito. Aconchegado em nossa volta quando nos disseram não. Não, não batizo, és solteira!
A mulher da pia e lavagem não tinha direito à pia batismal.
E fomos então aos porcos. Tu, solteira. Eu, gorduchinho, pagão.
Não batizo!
O que sentistes nunca contastes, ô, mulher resignada!
Pia, prato, copos, os talheres devias quebrar. Não me ensinastes como se quebra talher, o aço, a pedra do coração.
E devias. Copos não me bastam, copos não me bastam quebrar.
Como preservar tuas coisas se não quebrar agora a pedra imensa desse coração? Eu, merecedor de teu afeto, teu filho, pagão.
Já não rezo. Nunca rezei. Sabes, choro, mas choro como aqueles que trazem os olhos esgazeados como o santo que mantinhas em tua cabeceira ali. Os paninhos de tua higiene íntima também à cabeceira. A primeira dor de dente também ali.
Ave Maria, não! Pai Nosso, não. Não batizo!
Não batize! Ela dava o seu corpo mesmo, viu padre! Vendia o seu corpo, colaborava com a casa, me fez o filho pagão!
Isso é rezar?
É a minha forma. Um Pai Nosso que não há. Maria que não houve. O pai que escapuliu.
As mães solteiras quebram copos mas deviam quebrar bem mais. O aço, a pedra, as mães solteiras injuriadas deviam levar a lavagem ao altar.
Sou solteira, tive ele, mas eu sou gente também. Burra ainda em dizer.
Tive ele, vivo na pia, tive ele e nem me resguardei. Burra ainda em dizer.
Voltei tão triste, quebrei os copos, o senhor não batiza o sonho meu?
Burra ainda em contar. Ele era execrável, ele só deixou que o filho agarrasse em sua orelha ainda mais. Para que se aconchegassem os dois, para que se protegessem ao voltar.
Protegesse teu açude, protege quem tivestes, quem querias sempre com os seus passinhos, as unhas sujas, a dor de dente, o infame rastejar num porão para espiar bucetas desconhecidas.
Ele é meu. Não vão me prender?
Ias depois em casa, baixinha querida, com a tua marmita e dizias: não te querem mais lá, mas eu te trago comida. Me dê um abraço aqui.
Não te querem mais lá e agora é comigo. Mexeram comigo e eu que não vou deixar.
Eu que te tive, deixem ele. Tranco em casa, ele é meu!
Brava mulher em seu pranto e instintivo esforço para o aconchego do que pariu.
E daí que permaneces, ficas ainda agora aqui. Morta.
Agora sou eu quem te deixo em casa. Agora sou eu quem estendo a orelha. Afaga. Aconchega tua mão morta na orelha do teu filho!
Pode sim!
Pega. Aconchega.
É de arrepiar. É de arrepiar sentir a mão assim.
Há um estalo de madeira velha que esta mão trouxe junto. É a nossa antiga casa, a casa que eu não trouxe. A casa é o coração, vida, é a doce presença de alguém que já não está.
A casa. A ca-sa. Minha Lolita soletrada em tábua, paredes, na ausência do teu amparar. Aconchego bom, aconchego que se foi, devolvida a casa, que fazer?
Sobras, restos, migalhas. Herdar.
Não há mais porcos. Os porcos que alimentavas na ronda e pranto de tua vida. Teus vestidos outros corpos já estampam o dia bom, o alaranjado gritando ali.
Também eram ruins as tuas flores em lata com jornais. O mau-gosto que herdei.
Jogo as flores na lata pela janela. Espatifam-se lá em baixo. Meu quebrar de copos e latas, menos o aço, como contigo aprendi.
Daí que a pedra persiste neste coração que pinga e me ocorre envolvê-lo também com jornais.
Lembro de uma mãe.
Eu lembro.
Cada um que se lembre. Lembre os brincos, os paninhos de higiene, o Sagrado Coração em cada mãe.
pr